O Reflexo do Espelho (2004)
"O movimento da poesia parte do conhecido e leva ao desconhecido. Raia a loucura se alguma vez se cumpre." Georges Bataille
Numa vila minhota existe uma biblioteca que contém uma quantidade razoável de livros: cerca de oito mil (contados por mim). Uma tarde cheguei mesmo a recortar um pequeno artigo de uma revista onde se dizia quais eram as bibliotecas mais recheadas do mundo. Ninguém acreditaria se ouvisse alguém dizer que gostaria de as visitar todas, uma por uma. Pois bem, eu digo: a biblioteca é uma espécie de santuário onde milhares de mentes sábias asseguram-nos que a civilização existe e que o passado aconteceu (assim cremos!). Uma apologia da Sabedoria, sem saber muito bem onde ela está, ou mesmo se existe! Se identificarmos Sabedoria e Verdade, então, onde está a verdade? Existe? E se existisse seria ela traduzível em linguagem (escusado será dizer linguagem humana!)?
Pensemos bem no mundo e na superfície à qual nos acostumamos a chamar de realidade. A linguagem está por todo o lado, assumindo formas muito variadas, mas sendo sempre linguagens; e só através dessas linguagens conseguimos modelos de interpretação dessa realidade. A linguagem foi a única forma que conseguimos encontrar para obter um reflexo da nossa própria imagem e daquilo que desejaríamos que fosse. Assim, a realidade seria o espelho e a linguagem o elemento mediador que incide e reflecte o que um dia quisemos que fosse a cor, a forma, a textura e o cheiro dessa realidade. Hoje seria impossível alterar as definições dessa ordem estabelecida.
Sem a linguagem (e entendamos este conceito num sentido bastante amplo) seria como se olhássemos um espelho e não víssemos o nosso reflexo; seria um não saber que existimos como seres pensantes. De facto, a linguagem cria realidades que suportam as nossas vidas; a linguagem manipula e forja a história e, por consequência, o nosso sentido histórico.
A linguagem é o pilar mais firme que sustenta toda a humanidade, sem o qual esta se desmoronaria em direcção a um silêncio absurdo.
Se deixarmos um pouco a abstracção e voltarmos para a rua ou caminho por onde deambulávamos, faremos uma pergunta necessária e concreta: o que é um espelho? A maioria das pessoas responderia que aquela coisa (quadrada, redonda, oval, triangular...) que reflecte a nossa imagem se chama espelho. Eu diria (e voltando para um plano abstracto): o espelho é muito mais que um simples objecto do nosso quotidiano. O espelho pode ser usado como uma espécie de despertador da consciência do absurdo do ser e, paradoxalmente, do absurdo da morte. Pode ainda ser revelador de profundezas insondáveis na pupila dos nossos olhos: entrada para o território da alma, se ela existisse como um simples vapor ou fumo... mas, usando metáforas mais recentes, seria um mergulho nas águas geladas, seria a intuição do tamanho da parte oculta do iceberg e do quão terrífico pode ser... O espelho é ainda o único objecto capaz de dar a percepção da quantidade de tempo que encerra um momento suspenso. Será que era isto que sentia Narciso ou estava tão-somente embriagado com a sua aparência?
O espelho é a pior das religiões para aqueles que sabem a sua função secreta de revelador, pois não abre espaço para ilusões, nem promete um reino de delícias num além...
Acabaram-se as metanarrativas, agora resta o espelho como único ditador da realidade, mas já foi um Hitler, um Mussolini ou mesmo um discreto Salazar... um Comunismo disfarçado com pele de cordeiro... não, não acabaram, ainda há o capitalismo das potências... mas o espelho é que nos aproxima de algo muito mais profundo...
Imagine-se, num plano horizontal, a humanidade e o mundo inteiro coberto por um véu leve e semitransparente, ou por uma neblina matinal. Agora, esqueça-se a linguagem, apure-se um olhar de águia e uma sensibilidade térmica de serpente e sentiremos qual a substância desse espelho ou realidade escondida... um borbulhar de matéria viva, uma corrente incessante de lava efervescente... a vertigem da vida, do tempo, a fusão...
O véu define a aparência, o véu é a linguagem que o homem pôs ao seu serviço para, deste modo, poder suportar o peso de uma realidade demasiado bruta para a retina. Mas não quer ver bem porque não lhe convém. É mais fácil e menos doloroso, admitamos, passar por uma montra e ver o nosso reflexo, fingir que olhamos os artigos expostos, mas pensar: este casaco fica-me bem ou este penteado não me favorece! Mas tudo isto acaba por ser tão natural como a nossa sede. De facto, seria insuportável, até mesmo para aqueles que sabem o serviço secreto do espelho, viver constantemente esse transbordar de vida, até porque, humanamente e em estado normal de consciência, isso só é possível durante alguns segundos...
Não será em vão usar o espelho se quisermos conhecer algo mais de nós próprios ou - o que seria o mesmo - conhecer um pouco mais de uma mente colectiva.
Mesmo apetrechado da sua função secreta, o espelho pode não passar de um criador de ilusões... tal como se alguém lesse um livro e não percebe-se o seu sentido mais intrínseco...
Assim, vejamos também os livros como espelhos, e de longe os mais especiais e mágicos. É extraordinário ver como há tantos espelhos diferentes, com tantas histórias diferentes para contar ou teorias para defender... e a sensação única de olhar para um deles e sentirmo-nos reflectidos, identificados... esta é a prova de como a linguagem, o tal véu, é necessária à subsistência do ser humano tal como ele é... uns sabem-no, outros não... uns fazem surf sobre as páginas de um livro, outros mergulham nele; uns olham o espelho e apenas vêm a sua aparência, outros vêem a si próprios e à humanidade inteira.
De tal modo que me sento bem no centro da biblioteca e revejo mais uma vez aquelas estantes e sinto aquele cheiro de livro abandonado há muitos anos... mesmo sabendo que já rastreei a zona inteira em busca das relíquias, sondo uma vez mais, de longe, e o meu olhar bate contra um título: Inferno. Levanto-me e dirijo-me a ele... e que sensação a de ver o meu ser reflectido em pequenas parcelas, aqui e ali, na cor amarelada daquelas folhas, confundindo-me com a mente de um Strindberg... esse instante que começou na visão imediata do livro e acabou quando emergi do mergulho de algumas horas, foi como um partir de um conhecido para um desconhecido, um afloramento do inconsciente, um movimento poético tão autêntico como o movimentar da pena de um poeta...
Projecta-se nesta folha uma imagem que pretende ser a minha... e, talvez, um reflexo que poderia ser o vosso, ou não... de qualquer modo, uma imagem sempre superficial daquilo que se pretende dizer através de uma linguagem sempre redutora e incapaz de expressar aquilo que queremos exactamente, mas que não deixa de ser o único meio para tal. Como diria T.S. Eliot: And would have been worth it, after all (…) It is impossible to say just what I mean! But as if a magic lantern threw the nerves in patterns/ on a screen: / would it have been worth while (?).1
1 T.S.Eliot in “The Love Song of J. Alfred Prufrock”.
NS. 2004
Numa vila minhota existe uma biblioteca que contém uma quantidade razoável de livros: cerca de oito mil (contados por mim). Uma tarde cheguei mesmo a recortar um pequeno artigo de uma revista onde se dizia quais eram as bibliotecas mais recheadas do mundo. Ninguém acreditaria se ouvisse alguém dizer que gostaria de as visitar todas, uma por uma. Pois bem, eu digo: a biblioteca é uma espécie de santuário onde milhares de mentes sábias asseguram-nos que a civilização existe e que o passado aconteceu (assim cremos!). Uma apologia da Sabedoria, sem saber muito bem onde ela está, ou mesmo se existe! Se identificarmos Sabedoria e Verdade, então, onde está a verdade? Existe? E se existisse seria ela traduzível em linguagem (escusado será dizer linguagem humana!)?
Pensemos bem no mundo e na superfície à qual nos acostumamos a chamar de realidade. A linguagem está por todo o lado, assumindo formas muito variadas, mas sendo sempre linguagens; e só através dessas linguagens conseguimos modelos de interpretação dessa realidade. A linguagem foi a única forma que conseguimos encontrar para obter um reflexo da nossa própria imagem e daquilo que desejaríamos que fosse. Assim, a realidade seria o espelho e a linguagem o elemento mediador que incide e reflecte o que um dia quisemos que fosse a cor, a forma, a textura e o cheiro dessa realidade. Hoje seria impossível alterar as definições dessa ordem estabelecida.
Sem a linguagem (e entendamos este conceito num sentido bastante amplo) seria como se olhássemos um espelho e não víssemos o nosso reflexo; seria um não saber que existimos como seres pensantes. De facto, a linguagem cria realidades que suportam as nossas vidas; a linguagem manipula e forja a história e, por consequência, o nosso sentido histórico.
A linguagem é o pilar mais firme que sustenta toda a humanidade, sem o qual esta se desmoronaria em direcção a um silêncio absurdo.
Se deixarmos um pouco a abstracção e voltarmos para a rua ou caminho por onde deambulávamos, faremos uma pergunta necessária e concreta: o que é um espelho? A maioria das pessoas responderia que aquela coisa (quadrada, redonda, oval, triangular...) que reflecte a nossa imagem se chama espelho. Eu diria (e voltando para um plano abstracto): o espelho é muito mais que um simples objecto do nosso quotidiano. O espelho pode ser usado como uma espécie de despertador da consciência do absurdo do ser e, paradoxalmente, do absurdo da morte. Pode ainda ser revelador de profundezas insondáveis na pupila dos nossos olhos: entrada para o território da alma, se ela existisse como um simples vapor ou fumo... mas, usando metáforas mais recentes, seria um mergulho nas águas geladas, seria a intuição do tamanho da parte oculta do iceberg e do quão terrífico pode ser... O espelho é ainda o único objecto capaz de dar a percepção da quantidade de tempo que encerra um momento suspenso. Será que era isto que sentia Narciso ou estava tão-somente embriagado com a sua aparência?
O espelho é a pior das religiões para aqueles que sabem a sua função secreta de revelador, pois não abre espaço para ilusões, nem promete um reino de delícias num além...
Acabaram-se as metanarrativas, agora resta o espelho como único ditador da realidade, mas já foi um Hitler, um Mussolini ou mesmo um discreto Salazar... um Comunismo disfarçado com pele de cordeiro... não, não acabaram, ainda há o capitalismo das potências... mas o espelho é que nos aproxima de algo muito mais profundo...
Imagine-se, num plano horizontal, a humanidade e o mundo inteiro coberto por um véu leve e semitransparente, ou por uma neblina matinal. Agora, esqueça-se a linguagem, apure-se um olhar de águia e uma sensibilidade térmica de serpente e sentiremos qual a substância desse espelho ou realidade escondida... um borbulhar de matéria viva, uma corrente incessante de lava efervescente... a vertigem da vida, do tempo, a fusão...
O véu define a aparência, o véu é a linguagem que o homem pôs ao seu serviço para, deste modo, poder suportar o peso de uma realidade demasiado bruta para a retina. Mas não quer ver bem porque não lhe convém. É mais fácil e menos doloroso, admitamos, passar por uma montra e ver o nosso reflexo, fingir que olhamos os artigos expostos, mas pensar: este casaco fica-me bem ou este penteado não me favorece! Mas tudo isto acaba por ser tão natural como a nossa sede. De facto, seria insuportável, até mesmo para aqueles que sabem o serviço secreto do espelho, viver constantemente esse transbordar de vida, até porque, humanamente e em estado normal de consciência, isso só é possível durante alguns segundos...
Não será em vão usar o espelho se quisermos conhecer algo mais de nós próprios ou - o que seria o mesmo - conhecer um pouco mais de uma mente colectiva.
Mesmo apetrechado da sua função secreta, o espelho pode não passar de um criador de ilusões... tal como se alguém lesse um livro e não percebe-se o seu sentido mais intrínseco...
Assim, vejamos também os livros como espelhos, e de longe os mais especiais e mágicos. É extraordinário ver como há tantos espelhos diferentes, com tantas histórias diferentes para contar ou teorias para defender... e a sensação única de olhar para um deles e sentirmo-nos reflectidos, identificados... esta é a prova de como a linguagem, o tal véu, é necessária à subsistência do ser humano tal como ele é... uns sabem-no, outros não... uns fazem surf sobre as páginas de um livro, outros mergulham nele; uns olham o espelho e apenas vêm a sua aparência, outros vêem a si próprios e à humanidade inteira.
De tal modo que me sento bem no centro da biblioteca e revejo mais uma vez aquelas estantes e sinto aquele cheiro de livro abandonado há muitos anos... mesmo sabendo que já rastreei a zona inteira em busca das relíquias, sondo uma vez mais, de longe, e o meu olhar bate contra um título: Inferno. Levanto-me e dirijo-me a ele... e que sensação a de ver o meu ser reflectido em pequenas parcelas, aqui e ali, na cor amarelada daquelas folhas, confundindo-me com a mente de um Strindberg... esse instante que começou na visão imediata do livro e acabou quando emergi do mergulho de algumas horas, foi como um partir de um conhecido para um desconhecido, um afloramento do inconsciente, um movimento poético tão autêntico como o movimentar da pena de um poeta...
Projecta-se nesta folha uma imagem que pretende ser a minha... e, talvez, um reflexo que poderia ser o vosso, ou não... de qualquer modo, uma imagem sempre superficial daquilo que se pretende dizer através de uma linguagem sempre redutora e incapaz de expressar aquilo que queremos exactamente, mas que não deixa de ser o único meio para tal. Como diria T.S. Eliot: And would have been worth it, after all (…) It is impossible to say just what I mean! But as if a magic lantern threw the nerves in patterns/ on a screen: / would it have been worth while (?).1
1 T.S.Eliot in “The Love Song of J. Alfred Prufrock”.
NS. 2004
Etiquetas: reflexões
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